Arquivo para Tag: Mia Couto

A gênese do Dia narrada por Mia Couto

“Antigamente, não havia senão noite e Deus pastoreava as estrelas no céu. Quando lhes dava mais alimento elas engordavam e a sua pança abarrotava de luz. Nesse tempo, todas as estrelas comiam, todas luziam de igual alegria. Os dias ainda não haviam nascido e, por isso, o Tempo caminhava com uma perna só. E tudo era tão lento no infinito firmamento! Até que, no rebanho do pastor, nasceu uma estrela com ganância de ser maior que todas as outras. Essa estrela chamava-se Sol e cedo se apropriou dos pastos celestiais, expulsando para longe as outras estrelas que começaram a definhar. Pela primeira vez houve estrelas que penaram e, magrinhas, foram engolidas pelo escuro. Mais e mais o Sol ostentava grandeza, vaidoso dos seus domínios e do seu nome tão masculino. Ele, então, se intitulou patrão de todos os astros, assumindo arrogâncias de centro do Universo. Não tardou a proclamar que ele é que tinha criado Deus. O que sucedeu, na verdade, é que, com o Sol, assim soberano e imenso, tinha nascido o Dia. A Noite só se atrevia a aproximar-se quando o Sol, cansado, se ia deitar. Com o Dia, os homens esqueceram-se dos tempos infinitos em que todas as estrelas brilhavam de igual felicidade. E esqueceram a lição da Noite que sempre tinha sido rainha sem nunca ter que reinar.”
MIA COUTO

No livro “A confissão da leoa“, publicado, no Brasil, pela Editora Companhia das Letras. 

“Miudádivas, pensatempos”, texto que Mia dedicou a Manoel de Barros

 

(A Manoel de Barros,
ensinador de ignorâncias)

Estou sem texto, enriquecido de nada. Aqui, na margem da floresta, me desbicho sem vontades para humanidades. Entendo só de raízes, vésperas de flôr. Me comungo de térmites, socorrido pela construção do chão. No último suspiro do poente é que podem existir todos sóis. Essa é minha hora: me ilimito a morcego. Já não me pesam cidades, o telhado deixa de estar suspenso ao inverso em minhas asas. Me lanço nessa enseada de luz, vermelhos desocupados pelo dia. Nesse entardecer de tudo vou empobrecendo de palavras. Não tenho afilhamento com o papel, estou pronto para ascender a humidade, simples desenho de ausência. Na tenda onde me resguardo me chegam, soltas e díspares, desvisões, pensatempos, proesias. Assim, em miudádivas a Manoel de Barros, meu ensinador de ignorâncias:

A primavera cabe dentro do grilo.
Cigarras se alfabetizam de silêncios.
No liso da parede,
a osga se prepara para transparências,
ganhando a forma do nada.
Enquanto o ramo
vai transitando para camaleão
a aranha confunde madrugada com sotão.
Na mafurreira,
sobem ninhos de arribação, ovos do arco-íris.
Minha tenda se engrandece em teia.
A mosca se inadverte na armadilha.
Igual o amor
que me rouba artes de viver.
Formigas transportam
infinitamente a terra.
Estarão mudando
eternamente de planeta ?
Estarão engolindo o mundo ?
Insectos sonham ser olhados pelo sol.
Mas só a chama da vela os vê.
Já o ovo é iluminado por dentro,
tocado pela luz do infinito.
O ovo repete o estreante início,
a redundante gravidez do mundo.
Por isso, este surpreendido ovo
não tem competência para meu jantar.
Pena o estomago não entender poesias.

Nada se parece tanto: poente e amanhecer.
Defeitos na tela do firmamento?
Instantâneas aves,
andorinheiras, pedras que se despoentam.
A noite acende o escuro.
Tudo semelha tudo.
Só a coruja atrapalha a eternidade.

Está chovendo horas,
a água está a ganhar-me semelhanças.
Escuto ventos, derrames de céu.
Parecem-me luas e são lábios.
A tua boca me ilude, sou culpado de teu corpo.
Saudade: sou mais tu que tu.

Escuto, depois, a enchente.
Longe, a água desobedece a paisagens.
O rio toma banho de troncos,
raízes da água se soltam.
Sigo de catarata, luz encharcada.
E peço desculpa à margem:
desconhecia as unhas de minha transbordância.

Meu sonho está cego para razões.
Sei só escrever palavras que não há.
O sono me encaracola:
estou a ser pensado por pedras,
me habilito a chão, o desfuturo.

Mia Couto

Você conhece as “vagas” e os “lumes” de Mia Couto?

AS VAGAS E OS LUMES DE MIA COUTO

Confesso que sempre que me deparo com qualquer obra nova do Mia eu me sinto um tanto conturbada. Ansiosa pela leitura, não raro a procrastino, ou começo a ler e não concluo de imediato, postergando, sempre. Desta vez não foi diferente. Recebi, há alguns dias, o livro “Vagas e Lumes”, de Mia Couto. Hoje, após concluir a leitura, devo dizer que o livro me surpreendeu.

Apesar de ter nascido em Moçambique, um dos países mais pobres do mundo, marcado por profundas desigualdades sociais e assolado, na segunda metade do século passado, por duas grandes guerras, Mia Couto sempre nos traz, na noite escura que permeia toda a sua obra, algum luzeiro de esperança. No livro “Vagas e lumes” esse luzeiro aparenta ter sido momentaneamente ofuscado na dor, na dúvida, na saudade.

O poeta que sempre celebrou o sua condição de ave “em alguma vida fui ave”, hoje, no poema “autobiografia”, prefere esconder suas asas que, talvez, sejam afrontosas aos circunstantes, posto que onde nasceu “há mais terra que céu./Tanto leito é uma bênção/para mortos e sonhadores”.

Mia Couto sofreu a perda do pai em janeiro de 2013 e, em setembro deste ano, sua mãe também veio a falecer. O livro, parece-me, então, uma catarse. Um grito dilacerado. O seu modo de despedir-se dos seus. Assim o faz em “O habitante”, poema dedicado ao seu pai, no qual descreve as sensações de que inexiste a morte e a ausência do ser amado. Dirigindo-se diretamente ao pai, afirma o poeta: “Moras dentro”. Afinal, “só morre quem nunca viveu” – assinala no poema “Incertidão de óbito”. Acena a saudade de sua mãe, homenageia Drummond, João Cabral de Mello e Neto, Manoel de Barros e também Carlos Cardoso, seu amigo.MIA COUTO

Em “Vagas e lumes” o poeta continua a valer-se de metáforas muito suas. Sente-se árvore, no poema com o mesmo nome, assim como no poema Raiz. Permanece pássaro, no poema “Gaiola”. É pedra no poema “Estátua”: “Da abandonada estátua/ partilho o mineral destino”.

Sua paixão pela água: rios, mares e lágrimas, encontra variados registros. Em “Exíguos Anseios”, o poeta balbucia: “Um redondo de lágrima me basta”.

O Tempo está sempre presente, mas o poeta sabe sondá-lo e diz, no poema “Idade”: “a idade que tenho/ só se mede por infinitos/ Pois eu não vivo por extenso”. Enquanto no poema “Errata”, Mia assegura: “Quem é mortal, mente”.

E Mia Couto, exímio contador de histórias, valeu-se dos poemas para contar algumas. Tal qual em “Guerra”, “O naufrágio”, “A vez e a voz”, “A bela e o espelho”, “A casa”, “A mulher insone” e “O homem que amava a estrada”.

A morte reina absoluta em “Vagas e lumes”. Nos primeiros 12 poemas do livro, só para termos uma noção da recorrência temática, tivemos mais de dez alusões diretas à morte. É uma reflexão poética não sistematizada, caótica como a mente do poeta quando o coração sangra, sobre a vida, a morte que a integra e o pós-morte; a eternidade.

Assim como a morte é uma constante no livro, Deus também é. Esta última presença tão marcada me deixou de fato pensativa. A insistência em afirmar-se ateu, em demonstrar o seu descrédito na divindade, acaba por produzir um efeito invertido. Assim, do mesmo modo que seu pai é habitante da casa e habitante de seu íntimo sem que lá de fato o esteja, Deus também percorre todo o livro e o habita, sempre em letra minúscula: “deus”, mas onipresente.

No poema que dá nome ao livro, Mia Couto confessa:

“Há quem se deite

em fogo

para morrer.

Pois eu sou

Como o vagalume:

– só existo

quando me incendeio.”

Neste livro, embora se sinta vagalume, Mia me parece Fênix. Ave envergonhada de sua condição, ferida de morte na incandescência da vida, ardente em fogo, e em iminente ressurreição.

(Este texto foi escrito em Dezembro de 2014 e originalmente publicado em CONTI OUTRA